sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Tá na cara, Melodia

Me sinto a vontade no meu carro.
Extremamente a vontade no meu carro.
Cutuco as narinas,
retiro o tatu
e faço bolinha.

Às vezes eu lanço pra fora da janela num peteleco,
outras, eu passo no banco ou boto na boca,
dou uma mordidinha
e sem coragem de engolir
lanço pra fora da janela
e já não é mais problema meu.

(do meu carro eu também sei escarrar)

Fora de mim, eu lavo as minhas mãos;
fora do meu carro,
não sou, não existo, não pertenço!

A cidade em si eu não vejo,
as pessoas tampouco. 

As pessoas esperando na faixa de pedestre,
elas existem num plano espiritual muito distante
do qual não faço parte.

(daqui a pouco a gente entra naquele mês de conscientização no trânsito)

"acho que estou numa propaganda do carro que será o carro do ano.
Trajo terno e gravata e a barba rala 
como dizem que as mulheres gostam,
e sou branco.
Branco numa cidade tecnológica e desabitada,
mas ainda de fé cristã,
porque em frente da faixa há uma igreja
e insisto em fazer o sinal da cruz"

me benzo!
E sigo abençoado, na velocidade que quero,
pela rua que quero, cruzando, transpassando e penetrando
a via que quero sem os olhos do julgo, repetindo
intermitentemente a minha auto-ajuda

eu posso (dentro do meu carro)
eu sou (dentro do meu carro)
eu existo (dentro do meu carro)
porque tá na cara que o jovem tem seu automóvel, Melodia.

Mas daqui a pouco a gente entra naquele mês de conscientização no trânsito,

(antes fosse só o mês das noivas!)

bota a fitinha amarela e finge ser educado,
o amarelo do patinho de borracha
e que de nada entende de nada
circulando na cidade
confortavelmente em seu carro.


segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Fragmento

Vou ficar em silêncio
mesmo que o silêncio não me sirva
e eu deseje mesmo o movimento

a fala incontida,
os dedos sobre o seu corpo,
a aresta vincada com unha do origami,
o seu sorriso fácil,

a imagem entrecortada
desses pequenos prazeres

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Memória

Certo que uma palavra dita uma única vez possa,
inexoravelmente, atravessar a camada córnea
e ali permanecer
como a um berne
apodrecendo a carne.

Coisa mais nojenta!

põe-se uma manta de toucinho
sobre o ferimento vulcânico,
aguarda o berne apontar para o respiro
e então, pinça-o com a destreza de um médico cirurgião vulgar,
um curandeiro de ladainha incensada:
- Que não deixe seus ovos!

Depois com fósforo e álcool,
incinera-o.

(O fogo é elemento fundamental para purgar o mal:...)

II

mas,
sendo a palavra substância sem veículo corpóreo,
sobre ela não se põe emplasto,
não se extrai com pinça,
não se atiça o fogo

III

a palavra!
ah, o que se faz com a palavra?
aquela ouvida para se instaurar como a um mal,
como a um berne?

IV

Recomendação:
não a detenha!
Deixe que circule mas não a detenha.
Nunca a detenha!

a máquina da noite

tique-taque taque
uma nova ordem instaurada,
nada a ver com a máquina do coração,
o relógio digital.

deve ser louco
aquele que reitera
a obviedade das coisas

-o relógio, antigamente,
fazia um tique-taque, tique-taque...
vinha da sala e
ressoava pelos outros cômodos
até desaparecer, hipnoticamente, em sono.

Acordávamos sem o tique-taque:
sim,
alguma coisa surgia e se perdia com a noite!