sexta-feira, 13 de junho de 2014

Fragmento: diário de bordo em Laguna

5 de junho – Fragmento

(...) Melancolia! Abalável! Chove ininterruptamente em Laguna, diz o homem do tempo. A cidade se encharca. Em resposta, encharco-me também. Melancodesço, se é que existe uma palavra para o estado de tornar-se melancólico. O fato é que hoje não se poderá avistar o céu além das nuvens que o nublam e o acinzentam. Há nuvens sobre mim e todos. Só me resta pensar e cair numa rede impossível de não ser. Trafego médium sonâmbulo pela sobrevivência. Aos 24 anos de idade eu ainda não sei o que quero da vida; percebo que nado inutilmente e piegas contra a corrente (...)

(...) sei lá que dia é hoje... mas amanhã é 30 de maio de 2014. Tive que ir para o dia de amanhã para saber que dia é hoje, veja só?!!! Meus olhos estão cansados como o meu corpo e a minha mente principalmente. Um cansaço de eras, de antepassados também cansados. Se existe a genética, não deveriam ejacular os cansados/ não deveriam procriar os cansados/ os cansados geram filhos cansados. Aqui estou eu, 24 anos de indecisão. Minto! Talvez 4 anos de indecisão, de não se saber ser... aceitar a vida é muito difícil e é enganoso tudo isso (...)

(...) louvável é o gesto. Mas só o gesto. Perguntam-me os contentes: mas o gesto não é suficiente? Não, não é suficiente... quero as tramas em fios de ouro, a abundância, a adoração de Baal, o paganismo reavivado (...) Sou pagão,
Quero de tudo na terra
Quero de tudo pós-morte
(...)

(...) 12 de junho. Placas bacterianas visitam o hospital. Suas mães e seus bebês contaminados visitam o hospital, o tal hospital de Caridade Senhor Bom Jesus. Apesar de não ser cristão, todas as vezes que estou na espera da emergência para ser atendido, olho admirado para o quadro de Jesus. Singelo como um franciscano, Jesus pousa numa túnica lilás, olhos azulados, tez branca, padrão de beleza europeu. Jesus emoldurado me conforta. Mesmo que a garganta lateje, as emergências aumentem a cada ambulância que chega, não me importo, sinto-me reconfortado dentro da minha miséria. Mas vou falar da boca de Jesus agora: sua boca rosa tendendo ao roxo, efeito de umidade e luminosidade no lábio fino inferior; boca feita de tamanha harmonia e tão real que penso em beijá-la. Arrastar aqueles bancos com cadeiras grudadas que nos obrigam a sentar do lado de outras pessoas, até de baixo do quadro e num momento de febre e delírio, beijá-la; ter meus lábios rejubilados na graça dos seus lábios, Jesus, e esquecer a miséria, os bebês contaminados e a mulher que chegara com o policial para enfaixar o braço quebrado pelo marido e que por culpa de uma triagem ridícula, sofreria por mais algumas horas. Sim, deixar-me impotente na miséria, mas em seus lábios, Senhor (...)

(13 de junho) agora é noite. Queria ter falado do dia enquanto era dia. Agora o dia passado é só lembrança. O cara do tempo disse que o índice de umidade em Laguna para hoje é aproximadamente de 95%... cara, diga lá, por que nunca com certeza 95%? Sempre aproximadamente para tudo. Quê que há, não se garante? Digo-lhe apenas que com certeza, fez-se um lindo dia hoje. Sol de inverno, céu azulado, mas muitas roupas e calçados lavados que não secarão. Perdurarão úmidas, com certeza nos seus 95% de umidade, por muitos outros longos dias (...) No finzinho da tarde
Recolhe a minha roupa
Jogue-a sobre a cama
Simplesmente a jogue pela e sobre a cama
Não se preocupe em dobrá-las
Deixe-as amassarem
Contando o tempo e os dias
Que estarei fora
Quando voltar
Eu passo e dobro
Mato os fungos, os parasitas
Com vapor d’água.
(13 de junho de 2014, sexta-feira-feita-feriado)
Santo Antônio que me perdoe arrancar-lhe seu filho
Num aviltamento colérico
Porque o que eu desejo
(...)
- o que eu desejo beira ao ridículo!
(...)

argumento para um filme

Nós que somos muito livres
Faremos o que com os muito presos?
Nos trancaremos em nossa liberdade
Ou nos libertaremos em suas prisões?

Optaremos:

À barricada soerguida
Com móveis arremessados das janelas,
O coquetel Molotov junto ao corpo:
A nossa liberdade incendiária?

Optaremos:

Às grades em nossos portões,
O Ferro a listrar nosso olhar,
Uma Arquitetura feita para o deus Medo:
A nossa segurança enclausurada?

Optaremos

Claro, o mais fácil, por favor!
O melhor com o menor esforço.
“Toma esse suco mimimi de laranja,
Enquanto estouro a pipoca
E vamos pensar um filme.”

sábado, 7 de junho de 2014

fragmento

(..) Ele retornou. Disse que está arrependido e que me quer de volta. Que o que ele teve pelo outro foi apenas uma admiração momentânea que tão logo se tornou inexpressiva. Botou a culpa no álcool. Da noite que passaram juntos recrudescidos pelo álcool. Mas já não era a primeira vez que isso acontecia. Disse-lhe, por qualquer um põe-se admirado porque gosta de se apaixonar. Não duvido que enquanto te fodem, você não pede para que te fodam com mais força até que goze e exprima toda a sua admiração num eu te amo efêmero. Dândi? Hedonista? Porque também já fui efêmero, entenderei a sua efemeridade, abrirei meus braços e o receberei novamente. E o amarei não como um traído, orgulhoso de seus princípios inflexíveis; o amarei simplesmente pelo ato do reencontro (...)

quarta-feira, 4 de junho de 2014

eu fico sendo você

Um dia uso os teus pertences
e fico íntimo de ti.
Fico sendo íntimo de mim
na trama dos teus lençóis
assim que tu te ausentes
logo que resplandeça a luz.

Tomo conta da tua casa.
Espano o pó dos bibelôs.
Os mais bonitos vão para o bolso.
Imagino que ficarão interessantes
na minha estante.
não, não é furto, é lembrança de turista.

Começo a fumar o teu cigarro
pra saber o gosto que tem na tua boca.
Terá o mesmo na minha?
Ou terei um pouco da tua boca na minha?
Ou terei minha boca transmutada na tua?

Para isso servem a escova de dente,
o fio dental usado e reutilizado por mim.
Tua camiseta do avesso lançada ao chão
com o cheiro de suor permanecido nas mangas.

Essa obsessão de narcíseo amor,
faz de mim imagem masturbatória
de te ser,
ainda que nas tuas aparas, nos teus restos
no teu pouco descartado.