terça-feira, 3 de junho de 2014

A sala fez-se encosta rochosa: era arrebentação

Xinguei-a: vida, sua filha da puta! Esmurrei o ar e repeti o impropério: vida, sua filha da puta! Como se xinga alguém eu xinguei a vida. Como se a vida fosse feita de alguma matéria tocável, um corpo lânguido recostado no sofá a lhe causar ódio, porque descansa, e você sofre. Abri novamente a boca e também, novamente esmurrei o ar. Ainda descontente, levantei-me da cadeira e me agigantei: Vida, sua filha da puta! Tinha agora os olhos às pupilas dilatadas de um morto, o coração disparado e arrítmico ardendo na aorta. A dor aguda no peito, a respiração rareada, uma pressão dos diabos: sabia que vazaria por todos os lados. Então abordei a existência. De tudo aquilo o que restou foi isto? Ter meu sangue vertido pelos ouvidos, narinas e outros orifícios sem meu consentimento? 


Estavam todos lá sobre o monte. Paisagem árida com poucos arbustos. O céu azul imperturbável de nuvens confirmava a terra crestada espocada de rochas; confirmava também, diferente do que se via nos filmes, que não cairia uma gota d’água em meu funeral. Tempo de seca e morte sob o esplender do sol. Por isso estavam todos no cume do monte. Num desespero festivo, soerguendo braços, dançavam o ritual, contatavam divindades. Puseram-me no centro, nu como a uma virgem ou outro animal qualquer. (novamente dentro do círculo da bruxa). Em mim surgiram chagas; talhos na pele gotejavam o sangue, a oferta. Embora entendesse o meu fim e devesse acordar ao sacrifício, fui tomado por uma bestialidade própria dos animais com chifre, dos anjos rebelados... vejam, gritou alguém que não pude identificar na minha agonia, é Baphomet corporificado aceitando a nossa oferta! Como num enxame, infestaram sobre o meu corpo, estrebucharam-no, estriparam-no e iam com os meus órgãos em suas mãos obter a benção.


Lá do alto, na encosta rochosa, você me perguntou: sabe o que o mar significa? Assenti que não com os olhos mirados no horizonte. O mar é o nosso inconsciente.

Então o mar rebentou na minha sala. Depois invadiu os outros cômodos. Água salgada soçobrando a vida construída. O que era feito de vazios, flutuava, dava-se ao fluxo da maré inventada; o que era maciço ganhava aspecto de embarcações há muito naufragadas colorindo espectros de luz o fundo e suas partículas em suspenção. Suspendia-me. Esvaziava-me as artérias, premido pelo desejo dos que querem ser encontrados, mas se lançam da encosta rochosa. A água inundava o meu corpo, e cada vez mais denso constrangia-me à submersão, à ancoragem, ao naufrágio, ao meu sufoco. Morreria ali. Nunca mais inteiro e reencontrado, preso entre os escombros, o meu corpo se decomporia limoso a mercê do movimento das águas.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Nada

Intrínseco em mim a facilidade de me entristecer sem motivo. De interruptores a baratas, o meu olhar fixa-se e se distancia. Um estado meditativo? O de me haver perdido e amorfo e vazio e cheio de não motivos. De me entristecer por nada, nada mesmo. Comidas requentadas, desafortúnios, desamores, mortes, doenças, não, não é o que me deixa triste, o que me entristece é o nada que me procura. Essa busca, mística e improvável, que o nada insiste, bate e rebate nos corpos dos outros e acha lugar em meu rosto, em meus olhos que se entristecem e vão ter com ele o diálogo preguiçoso sobre o nada. E por horas fitamo-nos um ao outro, com os olhos, com a boca, com as narinas... inspiro, ele inspira também. Alongo os dedos, ele faz o mesmo. Molho os lábios ressecados, ele acha que vou falar algo, visto que não, lambe os seus e guarda sua língua também. É sempre assim, salvo as pequenas diferenças gestuais que nem são tão diferentes assim. Por vezes no nada reconheço o gesto de outrem já passado e permanecido em mim. Disfarço, mas o nada, onisciente e refletido, põe-se a gesticular rindo de mim. Tolo, acha que pode se esquecer de tudo e começar do zero. É sempre o outro permanecido incidindo sobre mim e o nada me espelhando numa mímica dos ausentes. Saudade? A gente que se amava tanto e não se ama mais, agora ama os outros num amor herdado. E no lapso entre o meu riso e o seu, está o nada, está o seu descontextualizado na minha face rindo-se de mim, do meu discurso falso sobre a vida e a liberdade, pronto para me lançar no calabouço úmido com o nada cíclico.

Agora você pode voltar ao começo do texto...

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Doce é o enxovalho se é da tua boca que me vem

Doce é o enxovalho se é da tua boca que me vem
Pois tudo que chega ao meu ouvido,
vindo de ti,
só pode ser bom.

Porque vem
como tiros certeiros
sobre os cercos do amor e do ódio.

Deita o gado pelos chifres
Imola-o com sua faca
Verte o seu sangue
Sai ileso.

Estilhaça garrafas
faz um estrondo.
põe as putas,
os cafetões,
os bêbados e o dono do bar pra correr.

(Filmes de bang-bang são os seus favoritos)

Coração nauseabundo, hálito alcoólico, nicótico
entre o vício fluxo refluxo
Vou até a sua boca e com um beijo retorno
ao seu estômago.
Aperta-o como se fosse possível me extrair.

Então
me aposta
pelo prazer limítrofe de ter e me perder.
(...)
No hiato entre um blefe e um riso raso
lança as cartas, as certas
confunde o adversário
me reconquista.

Afortunado,
coloca-me num dos seus ombros
empunha sua pistola
e faz amor comigo.

fragmento

Há por certo novos ares de liberdade assolando a minha mente. Ares que até ontem pensei não existirem. Tudo parecia sufocado, enlameado, trancado, como a vontade de escarrar e não conseguir. Agora chamo por ele e imediatamente me vem à garganta e num único movimento com a língua e a boca lanço-o ao chão. Há quem ache nojento, inapropriado, mas também são os mesmo que acham a liberdade nojenta e inapropriada. A eles o meu catarro esverdeado, como bandeira hasteada para a liberdade.