Eu me tornei leonino.
Mudei a data do meu aniversário para o dia 1º de agosto. No dia 1º de
agosto eu nunca mais fui o mesmo. Mas só quem já perdeu o chão alguma ou
algumas vezes compreenderá esse texto. Nada de se imaginar no lugar do outro
como a um especialista acadêmico, um religioso caridoso, filantrópico ou
simpatizante. Se você não sentiu o que eu senti, retire suas palavras do meu
caminho. Essa não é a sua luta e nem a sua vida. Sim, só pode falar de paixão, quem
já se apaixonou; só pode falar de vício, quem é ou já foi viciado; só pode
falar de dor, quem deveras já sentiu, e por instantes viu seu chão sumir num
cadafalso: a corda apertando a garganta, sufocada em choro e pavor; e passou
dias indo dormir com o choro repreendido num sorriso para que ninguém percebesse
o quanto estava doendo, o quanto tudo, de uma hora para outra tinha se tornado
mortal, ou se apercebido mortal. Os superpoderes da adolescência ruíram. Não
era mais eu e também não era mais ninguém. Parece confuso, mas é só sentimento.
Naquele momento, e no outro momento e no seguinte, eu também não
poderia ser mais ninguém. Morri um pouco. Morri mais um pouco. Olhava-me no
espelho inventado de mamãe Oxum, e me perguntava: em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília, quantas vezes eu me reportei aos seus poemas, e dali fui
alçado, ainda que um pouco sujo, atrofiado, como a um passarinho que num
deslocamento rasante, dá com o bico na vidraça e atordoado não se imagina mais
voando. Mas passado o momento, torna a voar... Diferente das outras vezes em
que havia algo de estético no sofrimento, dessa vez, havia um sofrimento de
verdade. Era físico, mas que não se podia extrair; era imoral e sujo, de uma
sujidade microscópica, científica e distante.
- No teu espelho, Cecília, eu caí, irreconhecível!
Por onde eu andei, através do espelho, eu vivi mundos lúdicos de
horror. Havia tantos outros como eu! Todos contaminados, com feridas, escaras,
protuberâncias purulentas, mutações animalescas que permitiam voar, engatinhar
ou sentar às escrivaninhas e manter seus trabalhos normalmente, mas sem
expectativa de cura: uma burocracia! Uma pílula que pousa sobre o estômago, mas
sem promessa de toque! Um malote de correspondência recebido, outro entregue,
mas sem expectativa de cura. Eram de fato monstruosos!
\ como conseguiam?
\ como eu consegui?
\Riam-se de mim e do canto de suas bocas, encharcavam-se de pus e isso
não lhes doía. Como não podia lhes doer?
/ Eu saí correndo.
/ Fuga.
\ Tão purulento e monstruoso quanto eles, tão viral e contagiante
quanto eles.
/ Fuga. Eu cansei de fugir.
Foi quando me sentei, e estanquei o choro comprimindo os olhos induzido
por uma força de redescoberta. Aí você me pegou no colo, disse algumas palavras
e eu voltei a chorar, a me desfazer e refazer, e nos desfizemos e nos
refizemos, dia após dia, com amor e por amor.
1º de agosto de 2017. Eu me tornei leonino, não que eu acredite mais com
fervor em astrologia como antes; não que eu precise me explicar sobre qualquer
coisa que eu creia ou deixe, não mais:
Que eu me livre de ser
De estar sendo
Aquilo que querem de mim
Não mais hoje!
Hoje eu sou outro
Hoje eu sou quem eu quero ser
Pra quem eu quero ser
Com quem eu quero ser
Reconstruído
Vivo
De pazes com a morte.
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