quarta-feira, 4 de junho de 2014

eu fico sendo você

Um dia uso os teus pertences
e fico íntimo de ti.
Fico sendo íntimo de mim
na trama dos teus lençóis
assim que tu te ausentes
logo que resplandeça a luz.

Tomo conta da tua casa.
Espano o pó dos bibelôs.
Os mais bonitos vão para o bolso.
Imagino que ficarão interessantes
na minha estante.
não, não é furto, é lembrança de turista.

Começo a fumar o teu cigarro
pra saber o gosto que tem na tua boca.
Terá o mesmo na minha?
Ou terei um pouco da tua boca na minha?
Ou terei minha boca transmutada na tua?

Para isso servem a escova de dente,
o fio dental usado e reutilizado por mim.
Tua camiseta do avesso lançada ao chão
com o cheiro de suor permanecido nas mangas.

Essa obsessão de narcíseo amor,
faz de mim imagem masturbatória
de te ser,
ainda que nas tuas aparas, nos teus restos
no teu pouco descartado.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Nada

Intrínseco em mim a facilidade de me entristecer sem motivo. De interruptores a baratas, o meu olhar fixa-se e se distancia. Um estado meditativo? O de me haver perdido e amorfo e vazio e cheio de não motivos. De me entristecer por nada, nada mesmo. Comidas requentadas, desafortúnios, desamores, mortes, doenças, não, não é o que me deixa triste, o que me entristece é o nada que me procura. Essa busca, mística e improvável, que o nada insiste, bate e rebate nos corpos dos outros e acha lugar em meu rosto, em meus olhos que se entristecem e vão ter com ele o diálogo preguiçoso sobre o nada. E por horas fitamo-nos um ao outro, com os olhos, com a boca, com as narinas... inspiro, ele inspira também. Alongo os dedos, ele faz o mesmo. Molho os lábios ressecados, ele acha que vou falar algo, visto que não, lambe os seus e guarda sua língua também. É sempre assim, salvo as pequenas diferenças gestuais que nem são tão diferentes assim. Por vezes no nada reconheço o gesto de outrem já passado e permanecido em mim. Disfarço, mas o nada, onisciente e refletido, põe-se a gesticular rindo de mim. Tolo, acha que pode se esquecer de tudo e começar do zero. É sempre o outro permanecido incidindo sobre mim e o nada me espelhando numa mímica dos ausentes. Saudade? A gente que se amava tanto e não se ama mais, agora ama os outros num amor herdado. E no lapso entre o meu riso e o seu, está o nada, está o seu descontextualizado na minha face rindo-se de mim, do meu discurso falso sobre a vida e a liberdade, pronto para me lançar no calabouço úmido com o nada cíclico.

Agora você pode voltar ao começo do texto...

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Doce é o enxovalho se é da tua boca que me vem

Doce é o enxovalho se é da tua boca que me vem
Pois tudo que chega ao meu ouvido,
vindo de ti,
só pode ser bom.

Porque vem
como tiros certeiros
sobre os cercos do amor e do ódio.

Deita o gado pelos chifres
Imola-o com sua faca
Verte o seu sangue
Sai ileso.

Estilhaça garrafas
faz um estrondo.
põe as putas,
os cafetões,
os bêbados e o dono do bar pra correr.

(Filmes de bang-bang são os seus favoritos)

Coração nauseabundo, hálito alcoólico, nicótico
entre o vício fluxo refluxo
Vou até a sua boca e com um beijo retorno
ao seu estômago.
Aperta-o como se fosse possível me extrair.

Então
me aposta
pelo prazer limítrofe de ter e me perder.
(...)
No hiato entre um blefe e um riso raso
lança as cartas, as certas
confunde o adversário
me reconquista.

Afortunado,
coloca-me num dos seus ombros
empunha sua pistola
e faz amor comigo.

fragmento

Há por certo novos ares de liberdade assolando a minha mente. Ares que até ontem pensei não existirem. Tudo parecia sufocado, enlameado, trancado, como a vontade de escarrar e não conseguir. Agora chamo por ele e imediatamente me vem à garganta e num único movimento com a língua e a boca lanço-o ao chão. Há quem ache nojento, inapropriado, mas também são os mesmo que acham a liberdade nojenta e inapropriada. A eles o meu catarro esverdeado, como bandeira hasteada para a liberdade.