segunda-feira, 12 de maio de 2014

fragmento

Há por certo novos ares de liberdade assolando a minha mente. Ares que até ontem pensei não existirem. Tudo parecia sufocado, enlameado, trancado, como a vontade de escarrar e não conseguir. Agora chamo por ele e imediatamente me vem à garganta e num único movimento com a língua e a boca lanço-o ao chão. Há quem ache nojento, inapropriado, mas também são os mesmo que acham a liberdade nojenta e inapropriada. A eles o meu catarro esverdeado, como bandeira hasteada para a liberdade.

domingo, 11 de maio de 2014

Sonho

Meu pai trouxera para dentro da garagem um tigre. Ainda sedado fora posto dentro de uma caixa de sapato. Exuberante como os vistos pela televisão tinha a pelagem convidativa ao toque, os olhos penetrantes, os bigodes altivos. Os bigodes e a sua postura altivos como todo o corpo, contundente em seus movimentos ainda que estivesse sedado. Permaneci encantado. Com meus olhos o percorria, escaneava como um laser, registrando toda a sua ferocidade contida nas garras, nos dentes, que em questão de um minuto e meio, o tempo de retirar a xícara do microondas com leite fervido, depois mais meio minuto para misturar o café solúvel, me surpreenderia pelas costas, me enterraria as garras e com sua bocarra me estraçalharia no chão da cozinha. Entrei em pânico, mas ainda encantado com a possibilidade. A insólita possiblidade de ser estraçalhado por um tigre, no chão da cozinha e não ver o que me comia, mas saber que, o sague e a carne que se exporiam, decorria de um ataque de um tigre feroz, que acordou do seu sono intranquilo, primitivamente esfomeado em busca de carne, era para mim lisonjeador. Serviria a ele, mesmo que petrificado pelo medo. Medo que me fez dizer ao meu pai: 

- É ilegal manter animais exóticos em domicílio. Além do mais, ele é grande e na garagem cabe sequer uma pata dele. E a caixa de sapatos, - soltei um riso -, me admira tê-lo cabido. 

Fora a mesma coisa com o revólver comprado pelo meu pai. Quando o vi, ressaltei minha indignação, a minha moralidade, a minha falta de maturidade em relação à morte. Está carregada, veja. Revólver cromado de punho preto; as balas pareciam de prata e reluziam nos meus olhos, e a verdade é que me encantava com a arma por trás do meu discurso, que a queria em minhas mãos para usá-la. Simplesmente usá-la matando passarinhos ou estilhaçando garrafas sobre os tocos que conformam as cercas do sítio. Me sentiria vivo, com o sangue pulsando numa intensidade desigual, avassaladora.

Então a verdade que eu não queria ouvir, aquilo que é negado por não se ouvir os outros em sua completude. Assimilamos palavras desconexas, as reorganizamos, as ressignificamos ao nosso burlesco mundo jornalístico. 

-Meu filho, não é um tigre! Veja, é apenas um gato e ele está morto! Falei apenas que parecia um tigrezinho de tão parecido. Atropelei-o na vinda pra casa e achei que deveria trazer e enterrá-lo aqui no quintal, ao invés de deixá-lo apodrecer e impregnar a rua com sua fetidez. 

Olhei incrédulo. Era realmente um gato de pelagem semelhante à de um tigre, e morto. Senti em minhas entranhas algo que beirava ao vômito, ao catarro antes do ato de ser escarrado. Entonteci. A minha mente nublou de pensamentos revoltosos contra meu pai, contra mim, contra o gato, o tigre, o revólver e a morte. Numa fuga de ilusões, numa vontade de não ver tudo isso, virei a cabeça para a esquerda e me deparei com um lindo gatinho, parecido com um tigre se alimentando numa tigela com leite branquíssimo, quase plástico de tão branco. Desde então, nunca mais nenhum animal morreu, sequer um parente, até mesmo os que já morreram, levantaram de seus túmulos com as mesmas vestes impecáveis com que foram enterrados e agora convivem comigo, reclusos e felizes por gozarem da vida como imortais.

terça-feira, 6 de maio de 2014

memória que eu me conto

Já faz tanto tempo...
Foi-se o Big Bang
e você continua sendo
matéria pros meus poemas

Amendoim

Escuta o que tenho a lhe dizer.
É pequeno, intenso e intacto
como a um grão de amendoim descascado e não partido.
Imagine só, nossos olhos
sobre o cume do amendoim, sobre a pele cor de dunas,
vislumbrando o tamanho do gérmen,
lá onde as coisas intumescem, lançam raízes,
perfuram a terra
e depois brotam.

Escuta o que tenho a lhe pedir.
Não se assuste porque é pouco e simples.
É só um pouco de companhia, amendoim torrado e cerveja gelada.
Quem sabe eu lhe peça um beijo, um abraço...
Mas não se assuste, porque isso é depois do amendoim,
da cerveja e da muita conversa que teremos.
Que é quando as coisas criam raízes,
perfuram as nossas carnes e brotam.

amor, cebola e alho

Lembrei-me do programa de culinária que víamos
“Gente, vamos refolgar primeiro o alho
e depois a cebola. Por quê?
Porque a cebola solta água e estraga o sabor do alho.”
Imediatamente perguntei:
“Amor, eu sempre fiz certo né?
Sempre refolguei primeiro a cebola e depois o alho?”
Ele responde:
“Sim, amor, você sempre fez certo!”
Verdade ou não,
Ele estava tomando cuidado pra não ferir o meu ego.

Pílulas por vir

Vou a outro psiquiatra,
quem sabe me receite umas
(...)
Ou contato o mercado negro,
Especificamente a minha tia.
Ela sempre descola umas receitas
pretas, rosas, azuis.
pílulas diversas,
flores de todos os tipos
para desabrochar
nos olhos do notívago.

Poesia de Rotina

Poesia de Rotina
muita gente acredita
acredito que sim
também acredito
que há um cotidiano
e dentro do cotidiano
Poesia de Rotina

Outro por vir

de um instante ao outro
torno-me outro
que me comunica à face:
És imediatamente outro agora!
Você não é bipolar, disse meu psiquiatra!
agora o que faço com esse outro incurável?
com esse outro desesperançado de pílulas?

Vou a outro psiquiatra,
quem sabe me receite umas.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

seja você a parte do meu poema

por só nos vermos em partes
é que te rogo
uma ultima mordida
pra te arrancar um último pedaço
do seu céu claro
que desanuviará
o meu poema
com a tua presença

quarta-feira, 30 de abril de 2014

possível primeiro encontro

I

Seria assim:
Eu, constrangido
Ele, sem jeito.
Muito assunto
em poucas palavras.
Ele diria:
- diga alguma coisa?
Eu:
-não sei o que dizer!

II

Sorrio delicadamente
ou beijo o seu rosto?
Aperto a sua mão
ou te arrasto até a minha cama
enquanto me adianto tirando sua roupa?

III

ensaio minha reação
para que,
quando tocar o interfone
subir por minhas escadas
e adentrar por minha porta
eu não te espante com minha gargalhada nervosa
mas que eu te sorria
delicadamente.

IV

Em resposta desesperada à possibilidade de um encontro físico
Faço trejeitos diante do espelho
Tiro as roupas do guarda-roupa
Os sapatos e os cadarços.
Procuro as correntes, os anéis
As pulseiras e suas contas
Provo-as, recombino-as...
Cubro meu corpo com o que de mais belo possuo
Porque é somente o mais belo
Que te desejo dar.


das vivências

Andei meio assim contigo
Meio de inimizade
Olhar cabisbaixo
Vergonha de eu ter um sentimento tão ruim por você
Por coisa pouca
Diga-se pouquíssima coisa
Detalhezinho sem importância

É que eu tava numa
(Tipo amargura ou falta de nicotina?)

Desgostoso e perdido
Entre os meus pensamentos egoístas
De um passado desperdiçado
E um futuro inexistente.



o oco cheio de vazio

é que não posso ser porque não me pertenço não sou de mim mesmo: nem o corpo ou a fala nem o membro, nem a língua   nem o próprio gozo apree...