sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Os bibelôs da minha avó

Estou tentando me reorganizar em cima daquilo que acumulei. Entre uma pilha de livros no chão, uma estante em minha frente e um cesto de lixo. Julgando o que ainda me é pertinente, por edificar ou meramente por corromper-me como a filosofia, o crânio de veado, ou a faca ritual vazando-lhe o sangue para alimentar o pagão na festa de reis.

Dancei muito ontem na festa de reis. Servi de cavalo para os espíritos, que sequiosos, beberam pinga pela minha boca, inalaram fumaça pela minha boca, comeram pela minha boca, abençoaram ou maldisseram a sorte pela minha mão; sapatearam a terra bruta, enquanto meu corpo permanecia inamovível em algum lugar desconhecido, junto às outras pessoas que também bateram a testa pro santo, e deslocadas, iam de um lado ao outro, inconscientes porque nada mais lhes pertencia.

O lugar desconhecido era uma sala de jantar comum: paredes brancas com ornato em forma de rosáceas na cor carmim pastel; chão de madeira envernizada, janelas que não permitiam visualizar a noite; no centro uma mesa com oito cadeiras, uma cristaleira com aparelhos de jantar de puro requinte, e não havia nada que eu pudesse caracterizar como místico ou revelador. Não era como adentrar numa igreja barroca e instantaneamente, o ouvido ser tocado pela música vinda do órgão, e os olhos e o espírito a comprazer-se da beleza divina que possuía tal templo. 

Antes a sala de jantar da minha avó. A lembrança honorária da segunda guerra que meu avô participou, pendurada ao lado da farda que vestira quando homenageado. Os bibelôs sobre as mesas-altar que minha avó também acumulou durante anos, e dedicou tanto da sua vida tirando-lhes o pó que se assentava. Era desesperador vê-la fazer isso quando era criança. Todos os dias ela se punha a espantar o pó, a polir a prataria, a trocar as flores dos vasos, a regar as samambaias e a folhagem, que dizia ela, tinha o nome de “moeda de sapo”, e por recomendação nunca toquei.

E toda essa descrição, só dizia respeito a mim, aos outros, participavam do meu cenário e nada os interessava. Tudo passava despercebido. Até os olhos vitrificados dos bibelôs passavam-lhes como se nada os desse. Será que não entendiam nada sobre arranjo, ou não davam a mínima ao empenho investido por alguém? Será que também não dariam a mínima pelo meu empenho durante toda a minha vida? Me doaria em manter o cenário, como a velha fez, até perder toda a força das pernas, e coagida fosse a esperar a morte sobre a cama, a mercê daqueles que nunca viram sua individualidade nos bibelôs?

O fato é que a perdi cedo demais, como também me perdi cedo demais. Acumulei tantas coisas inúteis, e passo tanto tempo a organizar, a arranjar, a tirar o pó dos livros, dos meus instrumentos rituais, ao invés de jogá-los fora e dar novo rumo a minha vida... e sair afora não levando nem o necessário, nem a lembrança fenomenológica que me fez o que fez, e esperar a morte vivendo não mantendo intocável a relíquia, que nada mais é, que o miasma que se desprendeu do seu corpo e eu o catei prometendo-lhe a eternidade.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O resto de Drummond


(Primeira parceria poética entre Brunna Cortês e Rafael Geremias)

É que a gente acaba ficando com algum resto...
Eu fico não com os restos de saudade
Mas com os atos-restos que se tornam meus.
Impossível não ser assim:
A gente é muitos em um só
E um só em muitos.

Teu amor é o nada que se torna muito


Teu amor é o nada que se torna muito.
Ato tímido na rispidez fóbica
ao toque dos orifícios do corpo.

Pudico,
diz que prefere com a luz apagada.

Satírico,
gosto de constrangê-lo
com a luz acesa.

Teu amor é o nada que se torna muito


Estou apaixonado pelo nada que você me oferece. Pela falta da palavra afetuosa, do abraço delicado e confortante. De ti, senão a falta, o gesto comedido. A companhia pela companhia. Digestão do tempo. Eu que tantas vezes amei o excesso dos outros, e o que disso poderia extrair.


Então o meu amor freqüentou bares, festas, galerias de arte, cinemas, praças arborizadas, restaurantes, motéis, hotéis, correu o mundo atrás de aventuras inconseqüentes, e quis sempre o choro infantil ou a alegria falastrona. Quis ocupar todos os vazios. Será que precisava disso mais do que agora? Óbvio que não. Esse “precisar indefinido” deixei para mais tarde, junto com a efusividade do sexo, e as discussões calorosas, que outro, não você, me oferecerá num estalar de dedos.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Padrão de amor


És meu.
Disse-lhe cravando os olhos nos olhos dele.

Olhos meus: garras
Olhos teus: presa.

És tu meu bibelô,
És tu coisa de outra coisa que já tive,
Reavivamento da lembrança,
Ou outro corpo com a mesma lembrança?
Ah,
Que a tua vida pertencida a mim,
é vida adquirida.

Derivação
Ah,
que a tua vida pertencida a mim,
é a tua própria vida adquirida.
 

sábado, 29 de outubro de 2011

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Ritual


Quem me fez mal, partiu há muito tempo. Enfiou suas coisas nos bolsos, pegou o ônibus e não voltou mais. Eu disse novamente: quem me fez mal, partiu há muito tempo. Aí o abracei, e fui abraçado também. Fomos adormecendo, protegendo um ao outro dos espíritos traquinas que até ontem nos assolavam. Durante toda a noite, atravessamos cenários tempestuosos, desérticos, alagadiços, espaços vazios de qualquer coisa .

- Estou com medo, mesmo sabendo que preciso desse vazio.

Respondi-lhe cantando:

- like you always say
Safe travels,
Don’t die,
Don’t die…

Estávamos numa ponte sobre o nada, a mesma ponte que passei há alguns dias, e confuso por não entender meu destino, acabei lançando abaixo um cão negro. Mas agora, eu segurava a sua mão, suada pelo medo de não saber por qual caminho o levava, e se deveria manter-se confiante em mim.

Peguei sua mão, coloquei-a nos meus lábios para que sentisse a vibração das palavras e, conseqüentemente, seu corpo entrasse na freqüência do meu corpo:

- Hei, sou eu... Quem te fez mal, partiu há muito tempo.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A minha alegria


Minha tristeza,
eu guardo com mais cuidado
no cenho franzido.
Ou choro escondido,
porque ninguém tem nada a ver
com as minhas lágrimas.

Agora,
minha alegria,
eu deposito nos dentes,
com os lábios em regalo
apontando
(sem medo das possíveis verrugas)
a estrela que me fez sorrir hoje.

à noite!


Esta noite, no meu sonho, cobriram o meu corpo com argila branca e me carregaram da sala de massagem para a área da casa. Deixaram-me lá secando. Quando o sol se pôs, vieram retirar a casca seca. Surpresa e aflição minha: cada parte de argila retirada, a pele vinha grudada, e o que vi não foram músculo, gordura e osso, o que vi foram claras e gemas de ovos.

o oco cheio de vazio

é que não posso ser porque não me pertenço não sou de mim mesmo: nem o corpo ou a fala nem o membro, nem a língua   nem o próprio gozo apree...