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sexta-feira, 7 de julho de 2017

1º de agosto de 2016 (fragmento autobiográfico)

Eu me tornei leonino.

Mudei a data do meu aniversário para o dia 1º de agosto. No dia 1º de agosto eu nunca mais fui o mesmo. Mas só quem já perdeu o chão alguma ou algumas vezes compreenderá esse texto. Nada de se imaginar no lugar do outro como a um especialista acadêmico, um religioso caridoso, filantrópico ou simpatizante. Se você não sentiu o que eu senti, retire suas palavras do meu caminho. Essa não é a sua luta e nem a sua vida. Sim, só pode falar de paixão, quem já se apaixonou; só pode falar de vício, quem é ou já foi viciado; só pode falar de dor, quem deveras já sentiu, e por instantes viu seu chão sumir num cadafalso: a corda apertando a garganta, sufocada em choro e pavor; e passou dias indo dormir com o choro repreendido num sorriso para que ninguém percebesse o quanto estava doendo, o quanto tudo, de uma hora para outra tinha se tornado mortal, ou se apercebido mortal. Os superpoderes da adolescência ruíram. Não era mais eu e também não era mais ninguém. Parece confuso, mas é só sentimento.

Naquele momento, e no outro momento e no seguinte, eu também não poderia ser mais ninguém. Morri um pouco. Morri mais um pouco. Olhava-me no espelho inventado de mamãe Oxum, e me perguntava: em que espelho ficou perdida a minha face?

Cecília, quantas vezes eu me reportei aos seus poemas, e dali fui alçado, ainda que um pouco sujo, atrofiado, como a um passarinho que num deslocamento rasante, dá com o bico na vidraça e atordoado não se imagina mais voando. Mas passado o momento, torna a voar... Diferente das outras vezes em que havia algo de estético no sofrimento, dessa vez, havia um sofrimento de verdade. Era físico, mas que não se podia extrair; era imoral e sujo, de uma sujidade microscópica, científica e distante.

- No teu espelho, Cecília, eu caí, irreconhecível!

Por onde eu andei, através do espelho, eu vivi mundos lúdicos de horror. Havia tantos outros como eu! Todos contaminados, com feridas, escaras, protuberâncias purulentas, mutações animalescas que permitiam voar, engatinhar ou sentar às escrivaninhas e manter seus trabalhos normalmente, mas sem expectativa de cura: uma burocracia! Uma pílula que pousa sobre o estômago, mas sem promessa de toque! Um malote de correspondência recebido, outro entregue, mas sem expectativa de cura. Eram de fato monstruosos!

\ como conseguiam?
\ como eu consegui?
\Riam-se de mim e do canto de suas bocas, encharcavam-se de pus e isso não lhes doía. Como não podia lhes doer?
/ Eu saí correndo.
/ Fuga.
\ Tão purulento e monstruoso quanto eles, tão viral e contagiante quanto eles.
/ Fuga. Eu cansei de fugir.

Foi quando me sentei, e estanquei o choro comprimindo os olhos induzido por uma força de redescoberta. Aí você me pegou no colo, disse algumas palavras e eu voltei a chorar, a me desfazer e refazer, e nos desfizemos e nos refizemos, dia após dia, com amor e por amor.
1º de agosto de 2017. Eu me tornei leonino, não que eu acredite mais com fervor em astrologia como antes; não que eu precise me explicar sobre qualquer coisa que eu creia ou deixe, não mais:

Que eu me livre de ser
De estar sendo
Aquilo que querem de mim

Não mais hoje!

Hoje eu sou outro
Hoje eu sou quem eu quero ser
Pra quem eu quero ser
Com quem eu quero ser

Reconstruído
Vivo
De pazes com a morte.


quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Fragmento - 15 de janeiro de 2016

(...) cometeria uma loucura hoje porque é meu aniversário, e sendo ou não coisa inventada, vibra em mim uma energia de realização; uma loucura parecida com as cometidas pelos andarilhos mal criados, mas diferente. Sairia xingando, palavra encadeando palavra, palavrão encadeando palavrão, tudo isso sem mágoas ou dores, apenas por deleite amoral, (ato inconsciente de repúdio? Quero acreditar que não). Sairia nu, porque ainda considero a nudez o nosso melhor discurso de aceitação e de permutação entre egos. (...) Sempre me pergunto o porquê das pessoas gastarem tanto dinheiro com roupas, se a maior vaidade mora no corpo, que por si só se diferencia e se referencia, causando ao mesmo tempo em si e no outro, desejo e repulsa. Eu, entre tantas coisas, apenas um corpo a ser desfrutado pelo tempo, por mim e pelos outros. (...)

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

fragmento

Cachorro abana o rabo quando está feliz. Minha mãe solta gritinhos exaltados quando percebe tocar uma canção da qual gosta muito. Olho-me no espelho e noto que a minha íris está aparentemente mais clara, mais esverdeada que o normal. Sinto-me mais bonito por isso e sorrio envaidecido. O coração envaidecido reverbera. Mas há dias em que também me olho no espelho e está lá, a volta esverdeada contornando o castanho-mel e me entristeço. Será também que nem sempre quando o cachorro abana o rabo ou a minha mãe ecoa pela casa é indicativo de felicidade reinante? Por vezes a vida não é inteligível.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

(fragmento)

(...)eu só sei que viver só não consigo(...)
Só – Gustavo Galo

...) sobre o excesso e depois a ausência(... ainda que malquisto nos momentos de excesso, a falta é absolutamente indesejável... uma necessidade viciada de corpo; ainda mais o de gozar... não me aceito amando? Não o quero? Óbvio que o quero em sua completude permitida! E as loucuras permissíveis!. E agora a falta de um corpo e a boca florescida em dor; a serpente, ou outro animal peçonhento que a tudo o que toca faz perecer; ou outro pensamento mesquinho que formulado sobre o meu corpo o adoenta; o que recalcado surge, ressurge fantasmagoricamente para me perturbar à boca de miasmas de pus – a dor purulenta como a dos infestados

(... retrocesso

Talvez devesse dizer mais sobre a dor que me aflige num encorajamento protecionista; o de proteger meu corpo –
barreiras,
sacas de areia,
glóbulos brancos franceses,
Napoleão, Actimel Le LC Défense...
e disse
e o herpes serpenteando florescia por entre as flores cinematográficas: os quadros acelerados de um processo lento; de dias e estações contadas numa única tomada.


Quero perdê-lo de vista dos sentimentos ruins – de me ater girando sob o eixo da minha hipocondria cerebral.
(...)
Vontade estranha de me apaixonar. Ir a outro lugar
dar um rolê por ai
o fora daqui
viver uma novidade.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Argumento

Era a terceira vez que me visitavam. Ele e o namorado abriram a porta empunhando garrafas de vinho. Oh, que surpresa! Dissimulado, abri um sorriso e tomei suas garrafas. Coloquei algum tipo de música; Frank Sinatra? I’ve got you under my skin. Um estampido de rolha. Servi-os. Riam de algo, e logo me introduziram num novo assunto dando início a noite. Por algumas horas ficamos discutindo sobre o longo dia que cada um teve; das pessoas idiotas com quem trocaram mensagens, papéis e deveres: jogo de afazeres e desfazeres. O melhor é que é final de semana e podemos nos embebedar e fugir dos sempre cinco dias que nos atormentam! Rimos do que fora dito, mas também exclamamos um Ahhh! de admiração, soou bonito o que ele tinha dito. Estávamos amortecidos pelo vinho, o corpo e o pensamento, bem acomodados. Por que melhor? E o outro repetiu, por que melhor? e o outro, por que melhor? até brindarmos novamente. Noite de brindes. Até que foram embora.

A campainha. Oh, que surpresa! Realmente surpreso com a visita deles no outro dia. Você combinou de bebermos hoje, lembra? Vagamente me lembrei de tê-los convidado. Continuamos a noite de ontem. Como não tínhamos mais assunto, retornamos ao assunto do bar, de como havíamos nos conhecido. Rimos do improvável da situação. Éramos agora, depois de cinco encontros, amigos. Ríamos nervosamente com um fundinho de ironia que nos punha a disfarçar: eu tomava mais um trago enquanto eles se beijavam. Geralmente não se beijavam muito, mas quando se beijavam, em mim subia um ciúme à face, sentia-me constrangido e desprotegido num sorriso frouxo como se fosse possível me rejubilar pelo o amor dos dois. O modo como ele o beijava me causava ciúmes; o modo como ele respondia ao beijo me causava ciúmes. Estava apaixonado. Depois de cinco encontros eu estava apaixonado, e a bem da verdade é que não sabia por qual deles ou se pelo casal. Até que foram novamente embora.

Era domingo. E no domingo eles tiravam o dia para curtirem a preguiça. Pelo menos era o que tinham me dito. Imaginava-os curtindo a preguiça; a preguiça em cada milímetro de pele colada; as pernas coladas, entrelaçadas e dormentes; o tesão apontando ora num, ora no outro, ora em ambos e quando ambos, faziam um sexo preguiçoso e gozavam preguiçosamente. A campainha. Oh, que surpresa! Atendi a porta apenas de cueca como de costume. Eu morava sozinho e isto nos permite pequenas liberdades. Não se incomode com a gente, você está na sua casa! disse um deles quando me viu constrangido. "Sim, eu sei que estou na minha casa e vocês deveriam estar na de vocês se amando tediosamente!" Percebido o descontrole me desculpei imediatamente. Desculpas pelo o quê exatamente? Perguntou o outro. Fui grosso com vocês! -Sim, você ainda não nos convidou para entrar! Com um gesto convidativo fiz parecer que eram bem vindos.

De fato eram bem vindos e eu deveria estar enlouquecendo ou pensando alto demais. Era o nosso sexto encontro, mas agora participávamos de uma intimidade fraterna, seja lá o que isso signifique; uma intimidade fraterna a qual me permitia andar de cuecas como se eu estivesse sozinho, mas que não me permitia manifestar a minha paixão; que me permitia abraçá-los, no entanto, a qualquer sinal de endurecimento, deveria me afastar. Por que a gente não fode com os amigos? Ainda mais quando não são tão amigos?

Veio o sétimo, o oitavo, o nono... uma classificação, uma corrida de cavalos, de fórmula 1, os nossos encontros, os nosso dias em que ao menor sinal de endurecimento me afastava; ao menor sinal de ciúmes dissimulava no rosto “está tudo bem!”; ao menor sinal de pensamentos que me envolvesse de quatro com algum deles ou com ambos, embotava-me castrado. 

Existiu o encontro. A campainha. Era pra lá do sei lá que número de encontro, mas sabido era que meses havia. O vinho habitual, o assunto de sempre, o beijo de ambos disfarçando a falta de assunto. Pus-me no meio, com a língua serpenteando por entre as suas bocas que ao perceberem a minha se afastaram e me olharam... Podia sentir a taquicardia nos meus lábios. "Meu Deus, o que eles estariam pensando?" Logo abriram um sorriso e quando percebemos estávamos nus na minha cama. Existiu o gozo. Existiram vários gozos até que preguiçosamente nos mantivemos inertes por algum tempo; o da esquerda abriu a boca, achamos que você não estava afim de nós? “Oh, que surpresa!” Não exclamei, mas o meu corpo sentiu a surpresa. Só estava com medo. Puseram-se a rir o casal irônico. 

Em seguida o da direita: é que geralmente fazemos isso: conhecemos alguém por “coincidência”, ficamos amigos, insistimos nessa amizade até que o outro nos deseje numa festinha juntos, aí o abandonamos. 

- E vocês me abandonarão?

- Claro que sim, somos um casal e nos amamos muito!

Até que foram novamente embora e não existiram mais encontros.

domingo, 29 de junho de 2014

fragmento

(...) 27 de junho de 2014 (...)

Passado o primeiro momento de raiva, em que num impulso vi-me com as mãos no seu pescoço, recuperei a sensatez, enquanto estatelado no chão você recobrava-se da asfixia. E o perdoei, com o coração doído, as lágrimas brotando despretensiosas, eu o perdoei, mesmo sem saber da verdade, aquela que por medo você me escondeu (...)

quinta-feira, 19 de junho de 2014

fragmento

(...) Novo. Que novo o que? É velho. Muito velho. Data de uma coisa muito antiga, antepassada. Conservado, sim. Bem conservado. Vapores de naftalina, balas de halls. Cheiro de mictório conservado nas narinas. Hálito disfarçado. É para afastar traças, percevejos, fedores... escrito na embalagem ou nas estrelas. Beijo gostoso, sabor de Cherry-strawberry Lyptus. Refrescância imediata. Coisa importada. Coisa importante para um sexo oral. Isso, a língua em volta da glande como a revista feminina ensinou: 10 passos para um sexo oral perfeito no dia dos namorados. Vende que nem água. 10 passos para tudo o que você imaginar, e se não constar, entre em contato com o nosso editorial, providenciaremos uma matéria super hiper mega interessante.

Imagino quem obrigado escreve; quem compra por livre-arbítrio isso e rio. Só não rio de quem está ganhando dinheiro (...)

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Fragmento: diário de bordo em Laguna

5 de junho – Fragmento

(...) Melancolia! Abalável! Chove ininterruptamente em Laguna, diz o homem do tempo. A cidade se encharca. Em resposta, encharco-me também. Melancodesço, se é que existe uma palavra para o estado de tornar-se melancólico. O fato é que hoje não se poderá avistar o céu além das nuvens que o nublam e o acinzentam. Há nuvens sobre mim e todos. Só me resta pensar e cair numa rede impossível de não ser. Trafego médium sonâmbulo pela sobrevivência. Aos 24 anos de idade eu ainda não sei o que quero da vida; percebo que nado inutilmente e piegas contra a corrente (...)

(...) sei lá que dia é hoje... mas amanhã é 30 de maio de 2014. Tive que ir para o dia de amanhã para saber que dia é hoje, veja só?!!! Meus olhos estão cansados como o meu corpo e a minha mente principalmente. Um cansaço de eras, de antepassados também cansados. Se existe a genética, não deveriam ejacular os cansados/ não deveriam procriar os cansados/ os cansados geram filhos cansados. Aqui estou eu, 24 anos de indecisão. Minto! Talvez 4 anos de indecisão, de não se saber ser... aceitar a vida é muito difícil e é enganoso tudo isso (...)

(...) louvável é o gesto. Mas só o gesto. Perguntam-me os contentes: mas o gesto não é suficiente? Não, não é suficiente... quero as tramas em fios de ouro, a abundância, a adoração de Baal, o paganismo reavivado (...) Sou pagão,
Quero de tudo na terra
Quero de tudo pós-morte
(...)

(...) 12 de junho. Placas bacterianas visitam o hospital. Suas mães e seus bebês contaminados visitam o hospital, o tal hospital de Caridade Senhor Bom Jesus. Apesar de não ser cristão, todas as vezes que estou na espera da emergência para ser atendido, olho admirado para o quadro de Jesus. Singelo como um franciscano, Jesus pousa numa túnica lilás, olhos azulados, tez branca, padrão de beleza europeu. Jesus emoldurado me conforta. Mesmo que a garganta lateje, as emergências aumentem a cada ambulância que chega, não me importo, sinto-me reconfortado dentro da minha miséria. Mas vou falar da boca de Jesus agora: sua boca rosa tendendo ao roxo, efeito de umidade e luminosidade no lábio fino inferior; boca feita de tamanha harmonia e tão real que penso em beijá-la. Arrastar aqueles bancos com cadeiras grudadas que nos obrigam a sentar do lado de outras pessoas, até de baixo do quadro e num momento de febre e delírio, beijá-la; ter meus lábios rejubilados na graça dos seus lábios, Jesus, e esquecer a miséria, os bebês contaminados e a mulher que chegara com o policial para enfaixar o braço quebrado pelo marido e que por culpa de uma triagem ridícula, sofreria por mais algumas horas. Sim, deixar-me impotente na miséria, mas em seus lábios, Senhor (...)

(13 de junho) agora é noite. Queria ter falado do dia enquanto era dia. Agora o dia passado é só lembrança. O cara do tempo disse que o índice de umidade em Laguna para hoje é aproximadamente de 95%... cara, diga lá, por que nunca com certeza 95%? Sempre aproximadamente para tudo. Quê que há, não se garante? Digo-lhe apenas que com certeza, fez-se um lindo dia hoje. Sol de inverno, céu azulado, mas muitas roupas e calçados lavados que não secarão. Perdurarão úmidas, com certeza nos seus 95% de umidade, por muitos outros longos dias (...) No finzinho da tarde
Recolhe a minha roupa
Jogue-a sobre a cama
Simplesmente a jogue pela e sobre a cama
Não se preocupe em dobrá-las
Deixe-as amassarem
Contando o tempo e os dias
Que estarei fora
Quando voltar
Eu passo e dobro
Mato os fungos, os parasitas
Com vapor d’água.
(13 de junho de 2014, sexta-feira-feita-feriado)
Santo Antônio que me perdoe arrancar-lhe seu filho
Num aviltamento colérico
Porque o que eu desejo
(...)
- o que eu desejo beira ao ridículo!
(...)

sábado, 7 de junho de 2014

fragmento

(..) Ele retornou. Disse que está arrependido e que me quer de volta. Que o que ele teve pelo outro foi apenas uma admiração momentânea que tão logo se tornou inexpressiva. Botou a culpa no álcool. Da noite que passaram juntos recrudescidos pelo álcool. Mas já não era a primeira vez que isso acontecia. Disse-lhe, por qualquer um põe-se admirado porque gosta de se apaixonar. Não duvido que enquanto te fodem, você não pede para que te fodam com mais força até que goze e exprima toda a sua admiração num eu te amo efêmero. Dândi? Hedonista? Porque também já fui efêmero, entenderei a sua efemeridade, abrirei meus braços e o receberei novamente. E o amarei não como um traído, orgulhoso de seus princípios inflexíveis; o amarei simplesmente pelo ato do reencontro (...)

terça-feira, 3 de junho de 2014

A sala fez-se encosta rochosa: era arrebentação

Xinguei-a: vida, sua filha da puta! Esmurrei o ar e repeti o impropério: vida, sua filha da puta! Como se xinga alguém eu xinguei a vida. Como se a vida fosse feita de alguma matéria tocável, um corpo lânguido recostado no sofá a lhe causar ódio, porque descansa, e você sofre. Abri novamente a boca e também, novamente esmurrei o ar. Ainda descontente, levantei-me da cadeira e me agigantei: Vida, sua filha da puta! Tinha agora os olhos às pupilas dilatadas de um morto, o coração disparado e arrítmico ardendo na aorta. A dor aguda no peito, a respiração rareada, uma pressão dos diabos: sabia que vazaria por todos os lados. Então abordei a existência. De tudo aquilo o que restou foi isto? Ter meu sangue vertido pelos ouvidos, narinas e outros orifícios sem meu consentimento? 


Estavam todos lá sobre o monte. Paisagem árida com poucos arbustos. O céu azul imperturbável de nuvens confirmava a terra crestada espocada de rochas; confirmava também, diferente do que se via nos filmes, que não cairia uma gota d’água em meu funeral. Tempo de seca e morte sob o esplender do sol. Por isso estavam todos no cume do monte. Num desespero festivo, soerguendo braços, dançavam o ritual, contatavam divindades. Puseram-me no centro, nu como a uma virgem ou outro animal qualquer. (novamente dentro do círculo da bruxa). Em mim surgiram chagas; talhos na pele gotejavam o sangue, a oferta. Embora entendesse o meu fim e devesse acordar ao sacrifício, fui tomado por uma bestialidade própria dos animais com chifre, dos anjos rebelados... vejam, gritou alguém que não pude identificar na minha agonia, é Baphomet corporificado aceitando a nossa oferta! Como num enxame, infestaram sobre o meu corpo, estrebucharam-no, estriparam-no e iam com os meus órgãos em suas mãos obter a benção.


Lá do alto, na encosta rochosa, você me perguntou: sabe o que o mar significa? Assenti que não com os olhos mirados no horizonte. O mar é o nosso inconsciente.

Então o mar rebentou na minha sala. Depois invadiu os outros cômodos. Água salgada soçobrando a vida construída. O que era feito de vazios, flutuava, dava-se ao fluxo da maré inventada; o que era maciço ganhava aspecto de embarcações há muito naufragadas colorindo espectros de luz o fundo e suas partículas em suspenção. Suspendia-me. Esvaziava-me as artérias, premido pelo desejo dos que querem ser encontrados, mas se lançam da encosta rochosa. A água inundava o meu corpo, e cada vez mais denso constrangia-me à submersão, à ancoragem, ao naufrágio, ao meu sufoco. Morreria ali. Nunca mais inteiro e reencontrado, preso entre os escombros, o meu corpo se decomporia limoso a mercê do movimento das águas.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Nada

Intrínseco em mim a facilidade de me entristecer sem motivo. De interruptores a baratas, o meu olhar fixa-se e se distancia. Um estado meditativo? O de me haver perdido e amorfo e vazio e cheio de não motivos. De me entristecer por nada, nada mesmo. Comidas requentadas, desafortúnios, desamores, mortes, doenças, não, não é o que me deixa triste, o que me entristece é o nada que me procura. Essa busca, mística e improvável, que o nada insiste, bate e rebate nos corpos dos outros e acha lugar em meu rosto, em meus olhos que se entristecem e vão ter com ele o diálogo preguiçoso sobre o nada. E por horas fitamo-nos um ao outro, com os olhos, com a boca, com as narinas... inspiro, ele inspira também. Alongo os dedos, ele faz o mesmo. Molho os lábios ressecados, ele acha que vou falar algo, visto que não, lambe os seus e guarda sua língua também. É sempre assim, salvo as pequenas diferenças gestuais que nem são tão diferentes assim. Por vezes no nada reconheço o gesto de outrem já passado e permanecido em mim. Disfarço, mas o nada, onisciente e refletido, põe-se a gesticular rindo de mim. Tolo, acha que pode se esquecer de tudo e começar do zero. É sempre o outro permanecido incidindo sobre mim e o nada me espelhando numa mímica dos ausentes. Saudade? A gente que se amava tanto e não se ama mais, agora ama os outros num amor herdado. E no lapso entre o meu riso e o seu, está o nada, está o seu descontextualizado na minha face rindo-se de mim, do meu discurso falso sobre a vida e a liberdade, pronto para me lançar no calabouço úmido com o nada cíclico.

Agora você pode voltar ao começo do texto...

segunda-feira, 12 de maio de 2014

fragmento

Há por certo novos ares de liberdade assolando a minha mente. Ares que até ontem pensei não existirem. Tudo parecia sufocado, enlameado, trancado, como a vontade de escarrar e não conseguir. Agora chamo por ele e imediatamente me vem à garganta e num único movimento com a língua e a boca lanço-o ao chão. Há quem ache nojento, inapropriado, mas também são os mesmo que acham a liberdade nojenta e inapropriada. A eles o meu catarro esverdeado, como bandeira hasteada para a liberdade.

domingo, 11 de maio de 2014

Sonho

Meu pai trouxera para dentro da garagem um tigre. Ainda sedado fora posto dentro de uma caixa de sapato. Exuberante como os vistos pela televisão tinha a pelagem convidativa ao toque, os olhos penetrantes, os bigodes altivos. Os bigodes e a sua postura altivos como todo o corpo, contundente em seus movimentos ainda que estivesse sedado. Permaneci encantado. Com meus olhos o percorria, escaneava como um laser, registrando toda a sua ferocidade contida nas garras, nos dentes, que em questão de um minuto e meio, o tempo de retirar a xícara do microondas com leite fervido, depois mais meio minuto para misturar o café solúvel, me surpreenderia pelas costas, me enterraria as garras e com sua bocarra me estraçalharia no chão da cozinha. Entrei em pânico, mas ainda encantado com a possibilidade. A insólita possiblidade de ser estraçalhado por um tigre, no chão da cozinha e não ver o que me comia, mas saber que, o sague e a carne que se exporiam, decorria de um ataque de um tigre feroz, que acordou do seu sono intranquilo, primitivamente esfomeado em busca de carne, era para mim lisonjeador. Serviria a ele, mesmo que petrificado pelo medo. Medo que me fez dizer ao meu pai: 

- É ilegal manter animais exóticos em domicílio. Além do mais, ele é grande e na garagem cabe sequer uma pata dele. E a caixa de sapatos, - soltei um riso -, me admira tê-lo cabido. 

Fora a mesma coisa com o revólver comprado pelo meu pai. Quando o vi, ressaltei minha indignação, a minha moralidade, a minha falta de maturidade em relação à morte. Está carregada, veja. Revólver cromado de punho preto; as balas pareciam de prata e reluziam nos meus olhos, e a verdade é que me encantava com a arma por trás do meu discurso, que a queria em minhas mãos para usá-la. Simplesmente usá-la matando passarinhos ou estilhaçando garrafas sobre os tocos que conformam as cercas do sítio. Me sentiria vivo, com o sangue pulsando numa intensidade desigual, avassaladora.

Então a verdade que eu não queria ouvir, aquilo que é negado por não se ouvir os outros em sua completude. Assimilamos palavras desconexas, as reorganizamos, as ressignificamos ao nosso burlesco mundo jornalístico. 

-Meu filho, não é um tigre! Veja, é apenas um gato e ele está morto! Falei apenas que parecia um tigrezinho de tão parecido. Atropelei-o na vinda pra casa e achei que deveria trazer e enterrá-lo aqui no quintal, ao invés de deixá-lo apodrecer e impregnar a rua com sua fetidez. 

Olhei incrédulo. Era realmente um gato de pelagem semelhante à de um tigre, e morto. Senti em minhas entranhas algo que beirava ao vômito, ao catarro antes do ato de ser escarrado. Entonteci. A minha mente nublou de pensamentos revoltosos contra meu pai, contra mim, contra o gato, o tigre, o revólver e a morte. Numa fuga de ilusões, numa vontade de não ver tudo isso, virei a cabeça para a esquerda e me deparei com um lindo gatinho, parecido com um tigre se alimentando numa tigela com leite branquíssimo, quase plástico de tão branco. Desde então, nunca mais nenhum animal morreu, sequer um parente, até mesmo os que já morreram, levantaram de seus túmulos com as mesmas vestes impecáveis com que foram enterrados e agora convivem comigo, reclusos e felizes por gozarem da vida como imortais.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

A manutenção do simulacro

A casa extremamente suja, caótica. Eu, extremamente desgostoso, mimado. Melhor não ter entrado. Evitado o cheiro de mofo, de coisa evitada por três meses. Odor de coisa fétida, que não se permite aos sentidos nada além do que a repulsa de si. As roupas escuras embranqueceram, as roupas claras esverdearam. Há teias de aranha dentro do guarda-roupa. O chão engordurado de maresia. Sinto arrepios apenas em pensar, que por descuido, posso pisar descalço e ter que lavar os pés novamente. Sensação de quando se pisa na merda e a sensação perdura: você está infectado. 

II

Como se na minha ausência as coisas também não se ausentassem de mim, e não se decompusessem ou mudassem de cor. 

III

O simulacro desfeito na minha ausência. 
O simulacro violado pelo tempo na minha ausência.
O meu corpo violado e decomposto.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Cueca de elefante

Estranho é fazer sexo na frente de animal doméstico, a gente fica encabulado, parece que tá ofendendo a inocência do bicho; ainda mais quando se humaniza o bicho chamando de meu filhinho, vem cá com o papai, e o animalzinho pula no seu colo todo dengoso esperando por um carinho seu. Mas logo me perdoo, já vi tanto cachorro amarrado em cadela em plena luz do dia. O mais estranho foi sentir a língua do meu animalzinho no pé enquanto meu namorado me fodia.

Ele disse:

- Oh o jeito, quer participar também! – soltou uma risada e com o pé afastou o cachorro que voltou a sua condição de voyeur.

Perdi o tesão. Não quis mais. Coisa inapropriada: sentir a língua de um animal enquanto se é fodido de bruços. Ter seu corpo recrudescido numa sensação pavorosa onde seu prazer confunde-se entre um homem e um animal, e por um momento, momento antes de tudo suplantar-se em culpa, querer ambos lhe lambendo. 

Não aprendi a sentir prazer sem culpa. Deve ser muito evoluído quem, ao baterem em sua porta responde, já atendo, tô quase gozando! E ao namorado pede: me fode com força porque tem visita esperando! 

O sexo fica tão despudorado que parece coisa de profissional, sem sentimento. Ou com muito sentimento, mas sem tabu? Fico tão na dúvida se o problema é comigo... achei que ao me assumir gay, viveria livre, pelo menos sexualmente. Esses dias, ele chegou com uma daquelas cuecas de elefante, queria me fazer uma surpresa na cama. Achei tão ridículo e feio e ultrajante que não consegui nem sorrir e levar na esportiva. Depois me arrependi. Ele sentado com aquela cueca esquisita, constrangido. O abracei em comiseração. Ele se levantou e disse que eu precisava me tratar. Me tratar? Comecei a chorar. Ele voltou ainda com aquela cueca broxante de elefante, que me instigava a repressão, e me abraçou também num gesto de comiseração. Gosto da palavra comiseração, me sinto acolhido, compreendido, e por meio dela consigo compreender e acolher.

Senti-o excitado, me cutucando as costas enquanto eu ainda choramingava. 

Ele disse:

- Quer que eu tire a cueca? – os olhos apiedados, como se o erro cometido fosse seu. 

Aos poucos foi me deitando, e o pau que simulava uma tromba já não me importava mais, ou importava menos; até me divertia quando passava a mão sobre o púbis dele com as orelhinhas de veludo. 

Penso:

- Às vezes sou repudiável, no entanto, não aprendi a amar sem culpa.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Baby Alive visita o psicólogo

Sento. Há um copo d’água e as bonecas da minha irmã. As bonecas me olham inquisidoras, mas também silentes. Que é que tem? Falo pro bebê sentado que, cabisbaixo e com a boca resignada na mesma expressão plástica, parece distante e dissolvido em seu mundo. Mas sem dúvida, o bebê mais interessante de toda a estante, pois os outros mantêm aquela expressão de boca semiaberta com a língua como se fosse falar algo ou receber um pirulito ou outra coisa para chupar. Gosto da introspecção dos outros quando estou introspectiva, do contrário, acho todos uns metidos e arrogantes. Até as bonecas sorridentes me causam repulsa. Meu tio me disse que eu era do tipo de gente que achava que quem não está a meu favor, é contra mim. Mentiroso! Mesmo que fosse verdade, o que eu sou ou deixo de ser só interessa a mim, e toda opinião externa será suplantada antes que me tome e eu acabe chorando. Odeio o choro e por vezes o riso também, principalmente o riso do outro que me parece mais verdadeiro que o meu, que quando mostra os dentes realmente se rejubila como se atingisse alguma graça divina. Enquanto ao choro do outro, finjo ter compaixão, mas por dentro fico feliz que não é comigo, porque só eu tenho direito ao regozijo, porque sou muito especial, todo mundo diz isso. Meu pai e minha mãe sempre me disseram que eu era a princesinha deles. Muito acertadamente me ensinaram a limpar a bunda comprando uma Baby Alive no troninho, só não entendia o porquê das fraldas se ela tinha um troninho como eu. Abro um sorriso lembrando-me da minha infância feliz com meus primos. Todos sendo príncipes e princesas para seus pais. Na verdade eu só queria que me entendessem, porque eu sou diferente, mas parece que ninguém tá nem aí.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A memória inventiva I

Um filhote de gato entrou na cozinha exatamente agora. Agora que estou escrevendo e preciso de inspiração, de um insight. O gato arisco entrou, e quando percebeu que eu olhava se enfiou na fresta que entremeia o freezer e a geladeira. Se eu tivesse sido rápido, sacava a câmera fotográfica do bolso e o fotografava.  Sou do tipo que mata a cobra e mostra o pau; não porque duvidariam de mim, mas porque eu duvido de mim, do que vejo, do que leio, escuto ou toco, a minha memória distorce tudo. 

sábado, 18 de janeiro de 2014

superego

É por certo que já se vão uns sete anos de deslocamentos absurdos entre o imaginário e o real, e a verdade dilui-se entre tais mundos. Esferas da loucura. Acontece que a gente envelhece e das camadas mais profundas a memória brota. O que com esforço se pensou esquecido, surge inesperadamente para inflar os pulmões de remorso e adoecer o corpo. A memória ressuscitada em sua estrutura cadavérica a nos assombrar ao percorrer e transmutar a casa num desconhecido lugar, onde pisos invertem-se em tetos e os objetos flutuam; a loucura conjurada. O desespero sentido nas coisas. Então, a gente já não sabe o que é verdade e o que é mentira, o que é memória memória, ou memória inventada. 7 anos de dúvida. 

Lembro-me de você preparando uma pizza: extrato de tomate, mussarela e orégano, forno e eu esperando ansioso por um pedaço da pizza. O cheiro de orégano queimado espraiava-se pelo apartamento. Na terceira mordida já não queria mais. Fomos pro quarto e você me beijou, e me comeu. Depois dei pro seu amigo, o que jogava vídeo game e de pau duro pediu pra eu sentar e rebolar. Dizia a você: só não deixa “ele” assim, que tem gosto ruim. Tinha vergonha, e me referia a “ele” quando pedia para não tirar a cabecinha do pau mal lavada. Divertíamo-nos muito. Ele me acordava de madrugada, trancávamo-nos no banheiro, a toalha no chão, eu de quatro e ele ajoelhado atrás de mim, ambos quietinhos pra ninguém acordar. Até que em mim tudo imergiu em pecado. Era um grande pecador! Segundo meu pai, antes uma filha puta que um filho viado. Agora eu era viado, e era tão feio ser viado, mas maior era o medo que me descobrissem viado e ninguém gostasse mais de mim. Fui ficando viadinho, quietinho... eles me pediam e eu não dava, mesmo morrendo de vontade e tendo sonhos com eles. 

Era tão novo, a repressão tão forte, e o segredo tão necessário, que hoje duvido muito da veracidade. Sempre fui tão imaginativo que tudo isso pode ser criação da minha cabeça, por um dia tê-lo visto se secando após o banho, e disto ter feito matéria para as mais promissoras fantasias sexuais.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Eu

Trégua! É o que dizem os desesperados. Levantam as orações mais escabrosas a Deus, mas por trás de tudo, estão pedindo por trégua. A merecida trégua nas entrelinhas do Pai Nosso. Será que é Deus que é tolo, ou é a gente que é mimado demais? Um ou outro tá errado, e um dos dois é o culpado. Pelo menos segundo a lei dos homens. O homem que nunca pondera nada, pois prefere o julgamento que lhe envaidece. E por isso ando tão envaidecido. Abri a boca e proferi: é você, Deus, o culpado de tudo. Você que é bondoso, mas confabula com o Diabo e deixa que eu sofra.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

diálogo

Me fala:

- Se distraia!

Penso:

- Como se fosse possível!

Como se fosse possível me distrair com outra coisa que não o seu nome.

Como se fosse possível passar o dedo na borda da taça e não me surpreender visionando sobre a superfície do vinho o seu rosto.

Ou,

Controlar o pensamento súbito de que, na abertura da porta, entre você e não outro que me desaponte.

Quando apaixonado, fico deslumbrado, ganho ares de vidente.

o oco cheio de vazio

é que não posso ser porque não me pertenço não sou de mim mesmo: nem o corpo ou a fala nem o membro, nem a língua   nem o próprio gozo apree...