quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Arribação

Dias quentes de arribação:
pernilongos, baratas, besouros...
toda a sorte de infestação de insetos
tripudiam sobre o meu corpo;
dançam a revelia nos meus ouvidos.
querem meu sono,
meu sangue, 
meu suor,
o meu farelo de pão,
a minha pele morta crestada pelo sol na trama dos lençóis.

maldade silente

eles que não ferem nada
a mim me ferem

eles que não falam nada
a mim me falam

eles que não ferem e não falam nada
só a mim me ferem e falam

como se nisto
recobrassem a sua sensatez
e eu perdesse a minha

sábado, 22 de fevereiro de 2014

A manutenção do simulacro

A casa extremamente suja, caótica. Eu, extremamente desgostoso, mimado. Melhor não ter entrado. Evitado o cheiro de mofo, de coisa evitada por três meses. Odor de coisa fétida, que não se permite aos sentidos nada além do que a repulsa de si. As roupas escuras embranqueceram, as roupas claras esverdearam. Há teias de aranha dentro do guarda-roupa. O chão engordurado de maresia. Sinto arrepios apenas em pensar, que por descuido, posso pisar descalço e ter que lavar os pés novamente. Sensação de quando se pisa na merda e a sensação perdura: você está infectado. 

II

Como se na minha ausência as coisas também não se ausentassem de mim, e não se decompusessem ou mudassem de cor. 

III

O simulacro desfeito na minha ausência. 
O simulacro violado pelo tempo na minha ausência.
O meu corpo violado e decomposto.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Cueca de elefante

Estranho é fazer sexo na frente de animal doméstico, a gente fica encabulado, parece que tá ofendendo a inocência do bicho; ainda mais quando se humaniza o bicho chamando de meu filhinho, vem cá com o papai, e o animalzinho pula no seu colo todo dengoso esperando por um carinho seu. Mas logo me perdoo, já vi tanto cachorro amarrado em cadela em plena luz do dia. O mais estranho foi sentir a língua do meu animalzinho no pé enquanto meu namorado me fodia.

Ele disse:

- Oh o jeito, quer participar também! – soltou uma risada e com o pé afastou o cachorro que voltou a sua condição de voyeur.

Perdi o tesão. Não quis mais. Coisa inapropriada: sentir a língua de um animal enquanto se é fodido de bruços. Ter seu corpo recrudescido numa sensação pavorosa onde seu prazer confunde-se entre um homem e um animal, e por um momento, momento antes de tudo suplantar-se em culpa, querer ambos lhe lambendo. 

Não aprendi a sentir prazer sem culpa. Deve ser muito evoluído quem, ao baterem em sua porta responde, já atendo, tô quase gozando! E ao namorado pede: me fode com força porque tem visita esperando! 

O sexo fica tão despudorado que parece coisa de profissional, sem sentimento. Ou com muito sentimento, mas sem tabu? Fico tão na dúvida se o problema é comigo... achei que ao me assumir gay, viveria livre, pelo menos sexualmente. Esses dias, ele chegou com uma daquelas cuecas de elefante, queria me fazer uma surpresa na cama. Achei tão ridículo e feio e ultrajante que não consegui nem sorrir e levar na esportiva. Depois me arrependi. Ele sentado com aquela cueca esquisita, constrangido. O abracei em comiseração. Ele se levantou e disse que eu precisava me tratar. Me tratar? Comecei a chorar. Ele voltou ainda com aquela cueca broxante de elefante, que me instigava a repressão, e me abraçou também num gesto de comiseração. Gosto da palavra comiseração, me sinto acolhido, compreendido, e por meio dela consigo compreender e acolher.

Senti-o excitado, me cutucando as costas enquanto eu ainda choramingava. 

Ele disse:

- Quer que eu tire a cueca? – os olhos apiedados, como se o erro cometido fosse seu. 

Aos poucos foi me deitando, e o pau que simulava uma tromba já não me importava mais, ou importava menos; até me divertia quando passava a mão sobre o púbis dele com as orelhinhas de veludo. 

Penso:

- Às vezes sou repudiável, no entanto, não aprendi a amar sem culpa.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Palavrório de três versos

I

O que Narciso não entendia
Era que a superfície envidraçada
Refletia apenas uma parte de si.

II

Tal qual o destino de Narciso,
Crudelíssimo o nosso
De só nos vermos em partes.

Baby Alive visita o psicólogo

Sento. Há um copo d’água e as bonecas da minha irmã. As bonecas me olham inquisidoras, mas também silentes. Que é que tem? Falo pro bebê sentado que, cabisbaixo e com a boca resignada na mesma expressão plástica, parece distante e dissolvido em seu mundo. Mas sem dúvida, o bebê mais interessante de toda a estante, pois os outros mantêm aquela expressão de boca semiaberta com a língua como se fosse falar algo ou receber um pirulito ou outra coisa para chupar. Gosto da introspecção dos outros quando estou introspectiva, do contrário, acho todos uns metidos e arrogantes. Até as bonecas sorridentes me causam repulsa. Meu tio me disse que eu era do tipo de gente que achava que quem não está a meu favor, é contra mim. Mentiroso! Mesmo que fosse verdade, o que eu sou ou deixo de ser só interessa a mim, e toda opinião externa será suplantada antes que me tome e eu acabe chorando. Odeio o choro e por vezes o riso também, principalmente o riso do outro que me parece mais verdadeiro que o meu, que quando mostra os dentes realmente se rejubila como se atingisse alguma graça divina. Enquanto ao choro do outro, finjo ter compaixão, mas por dentro fico feliz que não é comigo, porque só eu tenho direito ao regozijo, porque sou muito especial, todo mundo diz isso. Meu pai e minha mãe sempre me disseram que eu era a princesinha deles. Muito acertadamente me ensinaram a limpar a bunda comprando uma Baby Alive no troninho, só não entendia o porquê das fraldas se ela tinha um troninho como eu. Abro um sorriso lembrando-me da minha infância feliz com meus primos. Todos sendo príncipes e princesas para seus pais. Na verdade eu só queria que me entendessem, porque eu sou diferente, mas parece que ninguém tá nem aí.

o oco cheio de vazio

é que não posso ser porque não me pertenço não sou de mim mesmo: nem o corpo ou a fala nem o membro, nem a língua   nem o próprio gozo apree...